NASCIDO
PARA MATAR - KUBRICK
O
Treinamento dos Marines Sob Uma Visão de Durkheim
Por
Marcello Eduardo
“Nascido
Para Matar” é uma das obras-primas do Diretor Stanley Kubrick (2001: Uma
Odisséia no Espaço, O Iluminado, etc) e trata do treinamento de recrutas para
integrar o corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e sua atuação na guerra do
Vietnam.
A
ação por vezes é narrada pelo Recruta Joker, interpretado pelo ator Matthew
Modine, maior nome do elenco, mas, na primeira parte, objeto desta resenha, as
atenções permanecem voltadas para o Recruta Gomer Pyle, interpretado por Vincent
D'Onofrio, e o Sargento Hartman, vivido por R. Lee Ermey, ambos apresentando
uma atuação magistral.
Desde
o princípio chama nossa atenção a organização interna da instituição Fuzileiros
Navais dos EUA, e como ela se encaixa perfeitamente na definição de Durkheim
para “Fato Social”, conforme vemos abaixo:
“É
fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior; (...) possui uma existência própria, independente
de suas manifestações individuais.” [1]
A
rigidez do treinamento imposto aos recrutas que desejam se tornar fuzileiros,
(e participar de um fato social com existência própria e independente, ou seja,
um grupo militar secular que existia antes e existirá depois deles),
perceptivelmente oriundos das mais diversas classes sociais, é, sem dúvida, uma
inequívoca forma de coerção exercida pela instituição, como forma de fazer seus
membros se adaptarem a ela.
A
coerção é aplicada de diversas maneiras. Identificamos a coerção formal, nas
rígidas regras militares, na hierarquia, nos uniformes todos iguais, nas
continências, nos modos de falar (“Senhor! Sim Senhor!” Ou “Senhor! Não
Senhor!”), no raspar dos cabelos que torna todos simbolicamente igualados.
E
também identificamos uma coerção velada, inserida nos treinamentos, mas
certamente não oficializada, (não encontrada em nenhum manual), quando os
valores morais e os inimigos são ridicularizados. Embora estes procedimentos
possam ser enquadrados em outras vertentes de estudos, não se pode negar que
fazem parte da formação do soldado sem laços (ou remorsos) que não aqueles que
atendam as intenções institucionais.
O
intento parece ser eliminar as individualidades e levar os soldados a se
integrarem nas práticas da consciência coletiva intra-muros, e Durkheim nos
fala exatamente disso quando diz que “consistem
em maneiras de agir, (...), exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um
poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele.” [2]
Claro,
a criação desta consciência coletiva particular dos fuzileiros objetiva a
formação de um corpo de combate coeso, disciplinado, focado nos objetivos da
instituição, que é possuir uma perfeita máquina de matar.
Isso
também se coadnua perfeitamente com a percepção de Durkheim a respeito desse
modo de ser coletivo: “Se todos os
corações vibram em uníssono, não é por causa de uma concordância espontânea e
preestabelecida; é que uma mesma força os move no mesmo sentido.”[3]
Na
obra de Kubrick essa força possui uma representação humana visível. A
encarnação da instituição é o Sargento Hartman, cuja função, cumprida com rigor
fanático, é transformar os recrutas sob seu treinamento em soldados dispostos a
matar e a morrer (principalmente a morrer) por seu país.
Esse
treinamento é conduzido no sentido de formar soldados dispostos a obedecer
cegamente e resistir a pressões que beiram o insuportável, assim sendo, desde o
princípio o chamado à submissão é somado a constantes humilhações, dirigidas
aparentemente ao acaso, mas obedecendo a um roteiro que permite a rápida
identificação dos melhores e dos piores, sempre sob a ótica da instituição.
Aqui
podemos observar que a coerção subjacente serve aos propósitos da instituição
porque aqueles que não se enquadram no perfil desejado sofrem todo tipo de
perseguições com apenas dois resultados esperados: adaptação ou exclusão. No
filme o caso emblemático é Leonard Lawrence, o Recruta Pyle.
Para
Durkheim, as maneiras de agir e de ser tem origem nessa coletividade, donde
podemos concluir que a primeira possui um caráter passageiro, enquanto a
segunda torna-se permanente.[4]
E também será lógico supor que modos de agir possam acabar se tornando modos de
ser, incorporando-se às personalidades.
Em
“Nascido Para Matar”, notamos o risco a que se propõe a instituição, com os
treinamentos a que submete seus soldados. “Se o instinto assassino não for puro e forte, vão hesitar na
hora da verdade. Vocês não matarão. Serão fuzileiros mortos.”[5].
O
criar, ou despertar, de um verdadeiro instinto assassino, não é coisa que se
possa controlar realmente e nem fazer adormecer depois, e o que vemos no filme
é que o treinamento não está preocupado com o tipo de homens que voltariam para
casa após o término da guerra.
Podemos
observar esse risco na conversão do Recruta Pyle no assassino desejado, em
parte, pelos Fuzileiros. Ao mesmo tempo em que incorporara as “qualidades”
desejadas pela instituição, ele perdera os controles internos que a instituição
tentara incutir em seu ser.
O
ponto culminante disso vai ocorrer na cena que se desenrola no sanitário, já
após a formatura. Apesar de demonstrar total destreza e conhecimento dos
movimentos militares padrões, Pyle é incapaz de continuar seguindo as ordens
superiores e o resultado é o assassinato do Sgt. Hartman e seu posterior
suicídio.
Vemos,
portanto, uma representação drástica da definição de Durkheim para a adaptação
ou não à coerção. Para ele, ao se conformar voluntariamente à coerção, passamos
a enxergar essas imposições como um sacrifício necessário, algo como um remédio
amargo, um dever. O não conformar-se, portanto, vai tornando cada vez mais
visível a coerção, até que uma ruptura seja inevitável.
Nascido
para Matar é um filme extraordinário, um retrato valioso sobre o comportamento
humano em sociedade, com regras e sem regras. Sobre os limites para a
doutrinação e sobre o poder de sentimentos como liberdade, união, amizade,
sobre humanidade e desumanidade.
[1] DURKHEIM,
Emile. As regras do método sociológico. S Paulo, Ed. Nacional, 1990. –
p.11
[2]
DURKHEIM,
Emile. As regras do método sociológico. S Paulo, Ed. Nacional, 1990. –
p.4
[3]
Ibid. p. 9
[4] “Esses tipos de conduta ou de pensamento
não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma força
imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira,
quer não”.(Ibid. p. 3)
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