NA SOMBRA DOS GIGANTES
A obra de Lynne Olson,
“Churchill e Três Americanos em Londres”, da Globo Livros (SP, 2013), Tradução
de Joubert de Oliveira Brízida, que resumimos nesta nova série, nos oferece uma
visão sobre a II Guerra que não consta na maioria dos livros e que não chega
aos bancos escolares.
Quando vemos as fotos dos
encontros dos três grandes (Roosevelt, Churchill e Stalin) reunidos em Yalta ou
Teerã, elas não deixam antever as terríveis tensões e desentendimentos que
apenas os bastidores presenciaram. Com base em entrevistas, livros auto
biográficos, diários, documentos oficiais, extra-oficiais e secretos e mais um
sem número de fontes, Lynne Olson nos leva para dentro destes bastidores.
O primeiro ângulo de nosso
passeio vai mostrar três figuras cujos papéis foram relativamente esquecidos,
diante da importância que se conferiu aos líderes de seus países, mas que foram
fundamentais para que a guerra tivesse o desfecho que teve.
O primeiro deles é Edward R.
Murrow, repórter da CBS enviado a Londres sendo acolhido na BBC de onde
transmitia suas reportagens para os EUA.
Durante os bombardeios contra
Londres, levados a cabo pela Luftwaffe, sob comando de Hermann Göring e ordens
de Hitler, Murrow levou para dentro dos lares americanos todo o drama da guerra
que era possível transmitir pelas ondas do rádio.
Edward Murrow no estúdio de rádio |
As transmissões de Murrow
fizeram com que os americanos sentissem a agonia que reinava em Londres,
compartilhassem a dor dos ingleses com o estrangulamento lento da nação pelos
ataques que destruiam as cidades e pelo racionamento progressivo de todos os bens
essenciais à sobrevivência do povo inglês, por conta da ação dos U-Boats, os
submarinos alemães que afundavam quantidades impressionantes de navios com
cargas preciosas direcionadas à Grã-Bretanha.
Londres sob ataque. |
Churchill visita áreas atingidas pelos bombardeios. |
O trabalho de Murrow fez com
que um sentimento de solidariedade surgisse entre o povo americano e se
tornasse, aos poucos, uma pergunta: não devemos fazer algo a respeito? E essa
era a intenção do repórter, solidário com o povo inglês.
Sua defesa sistemática do
envolvimento dos EUA na guerra para socorrer a Inglaterra lhe angariou a
simpatia de Churchill, com quem passou a ter encontros frequentes a ponto de
tornar-se íntimo da família do Primeiro Ministro.
A
neutralidade da América, que seus patrões apoiavam, era uma política que não
funcionava, julgava Murrow, pois falhava em levar em conta a estrondosa
diferença moral entre a Alemanha názi e os aliados. Quando cobriu a
incorporação da Áustria à Alemanha em 1938, Murrow testemunhara brutamontes
názis incendiando lojas de propriedade de judeus, forçando rabinos a se
ajoelharem para esfregar calçadas, e chutando judeus até a inconsciência. (pg.
38)
Mas a América, na pessoa de
Roosevelt, e muito pela nefasta influência de Joseph Kennedy (embaixador e pai
do futuro presidente), relutava em entrar na guerra e apenas lentamente foi
trilhando a estrada do envolvimento. Neste caminho, chegamos a nosso segundo
personagem, W. Averell Harriman.
Harriman |
Harriman era, bem
resumidamente, um “vigoroso e agressivo homem de negócios” quando decidiu ter
um papel de importância política no mundo em que vivia e, através de uma
constante busca de influência, conseguiu que Roosevelt o nomeasse para chefiar
o programa Lend-Lease, que pretendia suprir as necessidades inglesas de
suprimentos civis e militares. Mas não havia entusiasmo do Presidente:
Na realidade, até aquele momento, Roosevelt tinha mostrado
pouco interesse em
nomear Harriman para
qualquer função de importância. No decorrer dos trinta e cinco anos de
conhecimento mútuo, o Presidente não se impressionara quer pela inteligência,
quer pela personalidade do homem de cabelos escuros e queixo quadrado sentado
diante de si do outro lado da escrivaninha. (pg. 53)
Comboios de carga sob ataque dos submarinos alemães |
Moças das forças voluntárias inglesas descarregam rifles vindos dos EUA. |
As cargas do Lend-Lease. |
Apesar de passar maus bocados
por conta do desinteresse de Roosevelt em dar ao Lend-Lease a rapidez que
precisava e a urgência dramática que Churchill lhe conferia, o cargo propiciou
a Harriman acesso aos mais altos escalões da administração inglesa, o que
significa a pessoa do próprio Churchill.
E essa relação alcançou
níveis perigosamente íntimos! Harriman tornou-se amante de Pamela Churchill,
nada menos que a esposa do filho do Primeiro Ministro! A nora de Churchill teve
vários envolvimentos amorosos, inclusive com Edward Murrow, com quem quase se
casou.
Pamela Churchill
|
Harriman entre Churchill e Stalin, com Molotov ao lado.
|
Voltando a Harriman, sua
ambição o fez causar intrigas que tinham o objetivo de fazê-lo chegar nos
cargos que almejava e a causar dificuldades aos embaixadores americanos em
Londres e Moscou, mas, apesar das atitudes reprováveis e da intensa agenda
social, é inegável que Harriman trabalhou duro até que o programa Lend-Lease
pudesse, de fato, tornar-se operacional e ajudou muito na tarefa hercúlea de
vencer as resistências entre americanos e ingleses, especialmente entre
Roosevelt e Churchill.
E, por falar em embaixadas,
chegamos ao terceiro personagem: John Gilbert Winant.
Embaixador Winant.
|
Winant,
foi aluno e professor em
Saint Paul e
governador de New Hampshire, onde implantou um eficiente sistema de proteção
social para os trabalhadores e os mais carentes. Segundo Lynne Olson, Winant
era um idealista com extraordinário carisma, capaz de despertar simpatia
imediata e de liderar grupos nas tarefas mais espinhosas, apesar de ser
extremamente desorganizado.
Como chefe do executivo de
New Hampshire, Winant foi homem bem à frente do seu tempo, dedicando-se por
completo à justiça econômica e à mudança social, que se equiparavam ou eram até
melhores que os instintos reformistas de Franklin Roosevelt [...] Durante a
Depressão, o governador conseguiu pressionar vitoriosamente pela criação de
novos e radicais programas de bem-estar estatal que acabaram formatando o New
Deal, inclusive uma expansão das obras públicas, ajuda para os idosos, auxílio
emergencial para as mulheres e crianças dependentes e uma lei de salário
mínimo. (pg. 27)
O Rei George VI recebe Winant na estação de trem.
|
Mesmo as mais anti americanas
autoridades civis e militares inglesas reconheciam o valor e o caráter do
Embaixador Winant. O povo simples o conhecia e amava. Winant defendeu com todas
as suas forças o envolvimento americano na guerra, estava sempre disposto a
ajudar e caminhava pelas ruas após os terríveis bombardeios da Luftwaffe,
confortando a população.
Seu trabalho incansável
possibilitou que a aproximação entre Roosevelt e Churchill se desse de forma
mais rápida. Sua aproximação com Churchill também foi intensa, e manteve
relacionamento amoroso com Sarah Churchill, filha do Primeiro Ministro.
Churchill e Winant (chapéu na mão).
|
Sarah Churchill
|
Durante e após a guerra
nossos três personagens, cada um a seu modo, alertaram os EUA para o risco que
o mundo corria ante o crescimento soviético, mas não foram ouvidos.
Após a guerra Morrow
tornou-se uma das estrelas do noticiário da CBS nos EUA, mas jamais esqueceu a
Inglaterra e seu povo. Harriman manteve-se em alta junto aos presidentes
subsequentes até Lyndon Johnson.
Mais de seis décadas após o
fim da Segunda Guerra Mundial, Edward R. Murrow e Averell Harriman continuam
sendo figuras bem conhecidas nos Estados Unidos. Incontestavelmente considerado
patriarca fundador e santo patrono da radiodifusão de notícias, Murrow tem sido
objeto de diversos livros e filmes. Uma organização líder do radiojornalismo —
a Associação de Diretores de Noticiários do Rádio e da Televisão — confere
anualmente o Prêmio Edward R. Murrow aos que se destacam na atividade. Diversas
escolas em todo o país, inclusive a faculdade de comunicações da universidade
em que estudou, a Washington State University, levam seu nome. Quanto a
Harriman, o Council on Foreign Relations, em Nova York , concede
bolsas Averell Harriman em estudos europeus, e a Universidade de Columbia sedia
o Instituto Harriman para estudos russos, eurasianos e do leste europeu.(pg.
284)
Winant foi condecorado com a
Order of Merit pelo Rei George VI, mas ficou depressivo com as recusas iniciais
americanas em patrocinar o soerguimento da Europa. Ele não foi incluído nos
trabalhos quando o Plano Marshall finalmente encaminhou as coisas neste
sentido. Winant escreveu um livro de memórias que lhe ajudaram a recuperar um
pouco as precárias condições financeiras, porém, depressivo e sentindo-se
abandonado, Winant cometeu suicídio em 03/11/1947, aos 58 anos.
A notícia de sua morte causou
imenso pesar na Inglaterra e entre os que o conheceram, incluindo ai a viúva de
Roosevelt, Eleanor, de quem Winant era grande amigo.
Três semanas após o funeral
de Winant, cerca de quinhentas pessoas compareceram a um serviço religioso, não
anunciado, na St. Paul's Cathedral, em Londres, onde o primeiro-ministro
Clement Attlee leu trecho da Bíblia: “As almas dos corretos estão na mão de
Deus, e nenhum tormento as tocará.” Winston, Clementine e Sarah Churchill
estavam presentes...(pg. 281)
Se os leitores me permitem um
depoimento pessoal, ao ler o livro fui percebendo, e me entristecendo, com o
abandono a que o ex-embaixador e seus nobres ideais para o mundo pós-guerra
foram submetidos. Sua espiral depressiva é perceptível, mas a revelação de seu
suicídio foi surpreendente e particularmente dolorosa. Confesso que fui às
lágrimas com o desperdício deste que me pareceu um tão nobre espírito. Lamento
profundamente...
A AGONIA DE LONDRES1
É
difícil, quando se vive tempos de paz, imaginar uma grande metrópole como
Londres na linha de frente de combates mortais. Por mais que tenhamos fotos e
filmes, elas não são capazes de transportar quem observa para dentro de todo
aquele horror. Fotos e filmes não têm cheiro, o som das explosões não colocam
nossas vidas em risco.
Na Londres de 1940, e até
1945, o medo e as privações (estas alongadas muito além do final da guerra),
eram companheiros constantes dos londrinos, sem distinção de classe,
principalmente com o advento das bombas voadoras.
Tal atmosfera sombria, porém,
já se desenhava bem antes dos ataques:
Em Londres, os sinais da
guerra estavam por todos os cantos. Barricadas de sacos de areia e de arame
farpado protegiam o Parlamento, o nº 10 de Downing Street e outros prédios
governamentais, enquanto balões de barragens, presos a cabos, flutuavam sobre a
cidade. Soldados e policiais montavam guarda em pontes e túneis, atentos contra
possíveis sabotadores. As vitrines das lojas eram cobertas por painéis de
madeira ou tinham coladas faixas de papel marrom para evitar que estilhaçassem
com as explosões das bombas. Os espalhafatosos anúncios luminosos de Picadilly
Circus e as marquises iluminadas dos teatros do West End permaneciam apagados
em virtude de blackout, e as águas não mais dançavam nos chafarizes de
Trafalgar Square.(pg. 42)
Quando, a partir de 07/09/1940,
as ordens de Hitler desviaram os aviões da Luftwaffe das bases da RAF para as
cidades, tornou-se comum a audição do ronco dos motores, o avistar das imensas
formações de bombardeiros e a impressionante vista da cidade mergulhar em
explosões, colunas de fumaça e o céu se avermelhar com os incêndios,
desmoronamentos, gritos, choro.
Bombardeios da Luftwaffe |
Esquadrilhas de bombardeiros cruzam o Canal da Mancha rumo a Inglaterra |
Vigiando os céus de Londres. |
Pilotos da RAF partem para atacar os invasores. |
A artilharia anti-aérea inglesa em plena atividade noturna. |
Os programas de Edward Murrow
foram muito bem sucedidos na transmissão da resistência do povo londrino e na
identificação dos verdadeiros heróis:
Na
Batalha de Londres, as tropas da linha de frente não eram os ricos e
bem-vestidos do West End, e sim os bombeiros, os guardas, os médicos, as
enfermeiras, os clérigos, os reparadores de linhas telefônicas e outros
trabalhadores que todas as noites arriscavam suas vidas para ajudar os feridos,
coletar os mortos e fazer a cidade assediada voltar à vida.(pg. 48)
O povo comum, sem função
pública diretamente relacionada aos consertos, também enfrentava bravamente as
adversidades, andando vários quilômetros para chegar ao trabalho depois de
noites mal dormidas nos abrigos, enfrentando desvios dos bairros atingidos.
A despeito do medo, da dor e da
destruição causados pela Blitz, havia uma excitação no ar, uma aura de energia
quanto a viver em Londres durante aquele período que, na opinião de muitos que
lá estavam, jamais seria igualado. A ameaça da morte parecia apenas engrandecer
o regozijo e a elevação da alma pela sobrevivência...(pg. 49)
Rua recém bombardeada desobstruída e pessoas transitando em Londres. |
A busca de proteção nos túneis durante os ataques nazistas. |
Bombeiros combatendo incêndios após bombardeio. |
Noites e noites passadas nos abrigos. |
A
despeito da coragem resoluta, Londres emagrecia. O trabalho dos submarinos
alemães no isolamento da ilha estava dando resultados crescentes em tonelagens
de navios afundados. Lynne Olson informa que a Inglaterra chegou “...perto
da extrema fome como jamais esteve durante toda a guerra...” e que legumes,
verduras e frutas simplesmente desapareceram e o racionamento de alimentos
chegou ao extremo de permitir o consumo de “trinta gramas de queijo e a uma
quantidade mínima de carne por semana, e a 250 gramas de presunto e
margarina por mês...”.
Com a interminável sucessão
de semanas e meses, porém, a moral do povo começou a declinar. O Embaixador
Winant afirmou, segundo Lyne Olson, que:
A fadiga
e a monotonia... os transportes interrompidos... a poeira... as roupas
esfarrapadas e gastas... o tédio que surge com o desejo de coisas... nenhum
vidro para reparar as vidraças ... tropeçar no blackout a caminho de casa...
racionamento de eletricidade e combustível — tudo isso contribui para uma
desanimadora imagem mesmo para os mais determinados. (pg. 74)
Quando,
após o ataque japonês contra Pearl Harbour, os EUA finalmente entraram na
guerra, isso não significou muito alívio ao sofrimento inglês. Em poucos meses
o país recebeu a invasão de quase dois milhões de combatentes americanos que
ocupavam cada metro disponível de solo.
Se,
por um lado, isso trouxe uma movimentação da economia nos serviços demandados
pelos exércitos, por outro a gritante diferença entre o tratamento dispensado
às tropas americanas, que dispunham de tudo do bom e do melhor em artigos que
não eram disponibilizados aos ingleses, gerou um sentimento de inferioridade e
ressentimentos.
Com a
execução da Operação Overlord, o desembarque na Normandia, e a partida da
maioria dos soldados, a Luftwaffe praticamente desapareceu dos céus da
Inglaterra, mas em seu lugar chegaram as bombas voadoras.
As
bombas V-1, disparadas dia e noite de bases na França e na Holanda, chegavam
zunindo como um motor de motocicleta e semeavam terror e destruição. Segundo
Lyne Olson elas “Choveram sobre a capital e seus arrabaldes, matando e
ferindo mais de 330 mil pessoas, destruindo cerca de 25 mil casas e danificando
800 mil outras.” Bomba V-1 |
Flagrante de bomba V-1 prestes a atingir Londres. |
A singela e ineficaz tentativa de proteção. |
Ninguém
estava a salvo pois as bombas não possuiam alvo definido que não fosse Londres
e quando uma delas se aproximava era preciso imaginar, pelo barulho, onde iria
cair: “um silvo distante que ia escalando até um alto rugido, seguido de alguns
momentos agonizantes de silêncio quando o motor parava e a V-1 mergulhava na
direção do solo. Para muitos, o estresse de ouvir a bomba desligar e esperar
pela explosão se tornou quase insuportável.” (pg. 240)
Churchill visita Manchester. |
O Rei George VI e a Rainha Elisabeth. |
A Princesa (e futura Rainha) Elisabeth, voluntária no serviço de ambulâncias. |
Inverno gelado em uma cidade cheia de ruínas e com o carvão para aquecimento racionado. |
Flagrante do momento exato de uma explosão nas docas. |
Os
próprios Eisenhower e George Patton estiveram com suas vidas em risco pelos
ataques das V-1. As memórias de Churchill, citadas por Olson revelam o pesadelo
que os londrinos viveram naqueles dias:
O homem que voltava de noite para casa nunca sabia o que encontraria;
a esposa, sozinha o dia todo com os filhos, não tinha a certeza do retorno do
marido em
segurança. A cega
natureza impessoal do míssil fazia com que a pessoa em terra se sentisse
indefesa. Havia pouca coisa que se podia fazer, nenhum inimigo humano que
pudesse ser abatido. (pg. 239)
Mas,
quando parecia que a situação não poderia piorar, as V-1 foram substituídas
pelas V-2. Elas eram maiores, carregavam mais explosivos e chegavam aos alvos
em silêncio, tornando a busca de refúgio virtualmente impossível. Mais de mil
dessas caíram sobre a cidade vitimando cerca de três mil pessoas e obrigaram
mais de um milhão a deixar a capital. Londres ficou quase deserta.
Bomba V-2 em sua plataforma de lançamento. |
V-2 iniciando da descida rumo ao alvo. |
Gigantesca explosão em Londres. |
Socorro aos feridos. |
A destruição catastrófica. |
Com a
derrota e rendição da Alemanha, e o fim da guerra na Europa, a partida dos
aliados que tinham seus quartéis-generais em Londres deixou a cidade ainda mais
solitária. E com o agravante de que não havia mais a movimentação da economia
que a presença dos estrangeiros, especialmente os americanos, proporcionava.
E se
o leitor acha que o pior já passara, pode achar isso em termos militares,
porque o pior em termos de privações estava apenas começando, pois logo os
suprimentos do programa Lend-Lease, as exportações americanas, foram cortados:
Oito dias após a rendição do Japão, Harry Truman,
sucessor de FDR, cancelou os embarques de suprimentos alimentícios do
Lend-Lease para a Inglaterra, sem qualquer aviso prévio ao governo britânico.
[…] No outono de 1945,
a a oferta
de alimentos para os ingleses alcançou seu menor nível em seis anos. Em vez de
ser suspenso quando a guerra acabou, o racionamento de alimentos no país se
tornou consideravelmente mais restritivo. A porção de bacon foi reduzida em 25
por cento apenas dias após ser declarada a vitória sobre o Japão, e as filas do
pão, das batatas e de outros vegetais, muitas vezes aumentaram um quarteirão no
comprimento. (Pão e batatas logo também seriam racionados.) (pg. 267)
A
destruição deixada pelos ataques da Luftwaffe e das bombas voadoras deixou um
saldo de 40% das casas da cidade inutilizáveis por longo tempo e a Inglaterra
sofreu um processo de favelização de suas cidades, por conta dos barracos e
acampamentos que proliferaram para atender aos milhões de desabrigados.
Por
fim os americanos concordaram em ajudar a reconstrução da ilha por meio de
empréstimo e desconto no pagamento das mercadorias do Lend-Lease. Apesar disso,
as feridas inglesas permaneceram ainda por longo tempo:
...os Estados Unidos concordaram em ajudar a Inglaterra a
sair de sua crise financeira com um empréstimo de 3,5 bilhões de dólares,
pagáveis em cinquenta anos, e com generoso desconto no pagamento da ajuda do
Lend-Lease já proporcionada. Dos 21 bilhões de dólares de débitos do programa
Lend-Lease os ingleses deveriam saldar apenas 650 milhões. Mas a ajuda veio
atrelada a um excessivo — e, do ponto de vista inglês, altamente injusto —
preço: o endosso inglês a um plano de 1944, formatado em
Bretton Woods ,
New Hampshire, que criava uma nova ordem econômica internacional, tornaria o
dólar a moeda-referência do mundo, eliminaria o sistema de preferência imperial
britânico e, de forma geral, beneficiaria substancialmente o comércio dos
Estados Unidos. (pg. 269)
ROOSEVELT x CHURCHIL1
A
grande maioria dos livros didáticos de História abordam a II Guerra Mundial,
assim como toda a História, de forma tão superficial que poderíamos dizer
“passageira”. Explica seus motivos, suas fases, desfecho e consequências. Seria
difícil fazer diferente, de modo que não é exatamente uma crítica.
A
maior parte dos estudiosos que se debruçaram sobre o tema de forma aprofundada,
ficam restritos à vasta documentação pública, civil e militar, e gravitando em
torno dos grandes nomes: Hitler, Mussolini, Tojo, Stalin, De Gaulle, Roosevelt
e Churchill. Certamente não há como fugir destes, pois seus feitos gigantescos
fizeram com que figurassem no panteão da História, para o bem ou para o mal.
Mas não raras vezes há um quê maniqueísta.
Daí a
importância que dedicamos a esta obra de Lynne Olson, “Churchill e Três
Americanos em Londres”. Os gigantes estão lá presentes, um deles no título,
pois do contrário não passaria nem pelos editores, mas o foco não é Churchill,
e sim os três americanos, e vários outros ao seu redor, que passam quase
inominados pelos livros, mas que foram fundamentais na História.
O
mais surpreendente, porém, é que ao focar personagens secundários, Lynne Olson
desnuda os gigantes de uma forma tão impressionante que os arrasta ao nível do
ser humano comum. Vejamos se o leitor concorda com essa visão...
Quem
lê a maioria dos livros sobre o período forma a imagem de que os EUA demoraram
a entrar na guerra, mas, enquanto isso, ajudaram a Inglaterra de todas as
formas que poderiam, menos nos combates. E que, após Pearl Harbour, os EUA
entraram de cabeça, aliaram-se aos ingleses em uma amizade que os levou até a
Alemanha. Sim, em resumo de linhas bem gerais, foi isso mesmo. Mas a realidade
que Lynne Olson nos revela é bem mais complexa.
ROOSEVELT PEDE APROVAÇÃO PARA DECLARAÇÃO DE GUERRA CONTRA O EIXO |
De
início, os dois povos só tinham em comum a língua inglesa, mas nenhuma
compreensão cultural mútua, pelo contrário, nutriam preconceitos e cultivavam
estereótipos arraigados entre si.
...seus líderes políticos e militares, de Churchill e
Roosevelt para baixo, tinham pouquíssimo entendimento e conhecimento uns dos
outros. Ignorantes a respeito da história e da cultura do futuro parceiro, os
dois aliados tendiam a pensar em estereótipos quanto aos seus primos de
além-mar, com escassa avaliação de suas respectivas dificuldades políticas e
militares. Suspeitas, tensões, preconceitos e rivalidades ameaçaram descarrilar
a nova e singular confederação antes mesmo que ela se firmasse. E os problemas
foram exacerbados pela atitude condescendente inglesa em relação aos americanos
e pelo ressentimento dos EUA com a Inglaterra.(pg. 15)
Diante
do colapso que se aproximava, toda a comunicação, gestos e oratória de
Churchill em direção aos EUA era um incessante cortejar ao Presidente
Roosevelt. Este, em seus discursos, prometia tudo, menos entrar na guerra.
Falava em urgência, mas a prática ficava distante disso. Surpreendente, porém,
é perceber que os EUA “ajudaram” Hitler na tarefa de sangrar a Inglaterra ainda
mais.
Em
troca de cinquenta contratorpedeiros americanos bastante velhos, cedidos no
verão de 1940, o governo Roosevelt exigiu que lhe fosse concedido o
arrendamento por noventa e nove anos de bases militares na Terra Nova, nas
Bermudas e em seis possessões inglesas no Caribe. A negociação, como todos
sabiam, era bem mais vantajosa para os Estados Unidos do que para a Inglaterra,
e o governo britânico ficou profundamente ressentido. Apesar disso, não teve alternativa
e aceitou aquilo que considerou termos grosseiramente injustos.
[...]
Os
ingleses sentiram-se ainda mais lesados quando os contratorpedeiros da Primeira
Guerra Mundial chegaram. Dilapidados e obsoletos, eles não podiam ser
empregados sem extensas e custosas reparações.
Quando
a lei que proibia a exportação para nações em guerra foi modificada para
autorizar a venda à Inglaterra, foi exigido pagamento à vista, em dólares,
ficando o transporte por conta do comprador! O ouro inglês praticamente acabou,
foi pedido empréstimo à Bélgica e a situação ficou tão crítica que “...o
ministro das Finanças sugeriu ao Gabinete que considerasse a requisição de
anéis de casamentos e outras joias daquele metal precioso da população inglesa.”
O
primeiro encontro de Roosevelt com Churchill ocorreu em 29/07/1918, ao final da
Primeira Guerra Mundial, quando Roosevelt tinha 36 anos e Churchill 43. O
americano guardou profundas recordações daquele dia. O inglês nenhuma.
Roosevelt sentiu-se esnobado e Lynne Olson sugere que guardou ressentimentos
por mais de 20 anos!
FDR
ainda não tinha engolido o que considerava uma descortesia de Churchill.
“Sempre desgostei dele, desde o tempo em que fui à Inglaterra em 1918, disse o
Presidente a Joseph Kennedy, em 1939. “Ele agiu como um pedante no jantar a que
compareci, comportando-se como um lord, acima de todos nós.” (pg. 22)
Churchill, ao lado de Gilbert Winant, assina o acordo Lend-Lease |
A
postura de Roosevelt permitiu que Stalin tivesse terreno livre para avançar
sobre a Polônia e saísse do conflito como a segunda maior potência militar do
planeta. Churchill anteviu todos esses riscos, assim como Averell Harriman,
agora embaixador americano em Moscou, e Gilbert Winant, embaixador em
Londres. E todos
os alertas não foram suficientes para que Roosevelt agisse com mais dureza nas
negociações com Stalin:
Roosevelt,
dando toda a impressão de que não se preocupava em deixar a União Soviética como
potência militar e política dominante no continente europeu, ainda piorou as
coisas, na opinião de Churchill, ao dizer a Stalin em Yalta que planejava
retirar as tropas americanas da Europa, inclusive da Alemanha, em dois anos.
(pg. 256)
Winston Churchill. Abaixo o Primeiro Ministro com a
Família Real.
|
Churchill,
por seu turno, lutava contra os planos de dominação nazista na Europa, mas não
queria sequer discutir a perda de partes do Império Britânico, pois segundo ele
“não se tornara primeiro-ministro do Rei para presidir à liquidação do
Império Britânico.” (pg. 221). Era contra o aumento de autonomia da Índia e
resistiu a todas as tentativas de cessão de territórios ou de monopólios
comerciais que mantinha com as demais regiões do império, no que era arduamente
combatido por Roosevelt:
Temos
de deixar patente aos ingleses, desde o início, que não seremos simplesmente o
amigão que pode ser usado para tirar o Império Britânico de um aperto. (...)
Creio que falo como presidente dos Estados Unidos quando digo que nosso país
não ajudará a Inglaterra nessa guerra só para que ela continue capaz de tratar
com desprezo povos coloniais.” (pg. 221)
O
leitor deve estar atento ao fato de que os EUA queriam, eles mesmos, adentrar
estes mercados. Quando políticos e militares americanos falam em liberdade, não
é exatamente às pessoas comuns que se refere, mas, prioritariamente, aos
negócios.
Por
fim, o suposto e bem provável conhecimento de Churchill sobre o caso
extra-conjugal de sua nora Pamela com Averell Harriman e depois com Edward
Murrow, e de sua filha Sarah com o já casado Gilbert Winant, sem que se
apresente um único registro de reprovação, não falam exatamente bem de um
rematado conservador inglês, pelo que se depreende do relato de Lynne Olson.
Quando
Randolph Churchill voltou à Inglaterra de licença e descobriu o caso, explodiu
de raiva. Sua ira não derivava tanto do ciúme, disseram alguns amigos, mas de
um sentimento de que havia sido traído por Harriman, com o qual criara até
certa amizade quando, a pedido de seu pai, o acompanhara na missão no Cairo.
Amargo, Randolph acusou os pais de cumplicidade com o adultério “debaixo do
próprio teto deles,” em Chequers, e de só o fazerem por causa da importância de
Harriman e dos americanos para a Inglaterra. (pg.181)
Averell Harriman - Gilbert
Winant - Edward Murrow
|
Pamela Churchill -
|
A
deliciosa obra de Lynne Olson nos transporta aos bastidores aliados da II
Guerra Mundial e o que “vemos e ouvimos” por trás das portas é surpreendente e,
por vezes, chocante.
Hitler
previra que a aliança entre americanos, ingleses e soviéticos desmoronaria por
conta das diferenças intransponíveis entre eles. Constatar que ele quase
acertou é assombroso. Perceber os comportamentos indefensáveis de nomes
gigantes como Roosevelt e Churchill, Montgomery e Patton, que ressaltam a
importância de nomes bem menos conhecidos como Harriman, Murrow e Winant, é
algo que não se espera, embora não seja aceitável deixar de conceder humanidade
(virtudes e defeitos) a esses homens que escreveram a História. Bem pensado, contudo, essas imperfeições humanas fazem com que os papéis desempenhados por Roosevelt e Churchill sejam, a despeito de tudo, talvez até maiores. A conclusão é que, se mesmo com todos esses defeitos, realizaram tais feitos extraordinários, bem fizeram por merecer o título de Gigantes da História.
FIM
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1Este artigo tem como fonte a
obra de Lynne Olson, “Churchill e Três Americanos em Londres”, da Globo Livros
(SP, 2013), Tradução de Joubert de Oliveira Brízida.
Imagens
http://scrippsmediaethics.blogspot.com.br/2013/11/the-ethical-eye-of-edward-merrow.html
Winston Churchill, W. Averell
Harriman, Joseph Stalin, and Vyacheslav Molotov at Fourth Moscow Conference,
Russia, Oct 1944 - United States Library of Congress
http://ww2db.com/image.php?image_id=15578
In The Same Boat: British
Prime Minister Winston Churchill (from left) leaves Westminster Pier in 1942
with American politicians Harry Hopkins, John Winant and William Bullitt. At
right is British Labor Party politician and First Lord of the Admiralty A.V.
Alexander.
http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=123231825
http://www.bbc.co.uk/radio4/womanshour/03/2006_48_wed.shtml
http://www.bbc.co.uk/radio4/features/desert-island-discs/castaway/1feb3b9b
Winant, Roosevelt,
Stettinius, and Hopkins aboard USS Quincy off Egypt , 14 Feb
1945
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